27 de setembro – Dia Nacional da Doação de Órgãos: doar vida também é um gesto de amor e cidadania
“Se eu não sirvo para servir, então eu não sirvo para nada”. Este é o lema da família de Moreira, que inspirou os filhos de Dona Maria de Fátima a doarem seus rins diante da dor de perder a mãe, mesmo sem que ela tenha expressado esse desejo em vida. Entretanto, muitas famílias ainda optam por não doar os órgãos de um ente querido. De acordo com Adriana Carla de Miranda Magalhães, Médica Coordenadora da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante do Hospital das Clínicas (CIHDOTT – HC), e Edna Andréa Pereira de Carvalho, Enfermeira do mesmo setor, existem diferentes razões que motivam os familiares a recusar a doação de órgãos, que vão além do desconhecimento deste desejo por parte do doador.

Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante do Hospital das Clínicas. Da esqueda para a direita, Adriana, Isabela e Edna.
Para as duas responsáveis pelo CIHDOTT – HC, o principal fator é a falta de preparo das equipes de acolhimento em conduzir a entrevista e acolher as pessoas no momento de luto. O imaginário de que os corpos serão mutilados, ainda que seja necessário mantê-los íntegros, também contribui com a recusa. Outro fator impeditivo é o tempo que decorre entre o diagnóstico da morte encefálica e a entrega do corpo para a família, que pode chegar até 72h após o falecimento: “é um processo bem sofrido, esperar todos aqueles exames, e a suspeita da morte se confirmando gradativamente. É aquela morte escalonada, sabe? Cada hora é uma etapa até se trazer a notícia de que o ente querido está morto, como se fosse lavando, aos poucos, a esperança de que a pessoa fosse ficar viva. É bastante sofrido”. Por isso o trabalho das equipes de acolhimento é tão importante.
É necessário, como aponta Edna, que as equipes ofereçam aos familiares a oportunidade de doação, uma vez que o conceito da “oportunidade”, transforma a percepção de que os profissionais pedem algo para as famílias, ao mesmo tempo em que estão lhe tirando algo. Segundo Edna, na prática, essa mudança no discurso faz muita diferença.
No Hospital das Clínicas da UFMG a equipe de acolhimento do CIHDOTT acompanha e acolhe todas as famílias dos pacientes que estão em diagnóstico de morte encefálica, uma vez que este é um evento raro, complexo, e de difícil entendimento para as pessoas. Webster Moreira, um dos cinco filhos de Maria de Fátima, conta que antes mesmo da confirmação do diagnóstico de morte encefálica, ele, seu irmão e sua cunhada foram acolhidos pela equipe de Edna. Logo que seu irmão reconheceu o setor, perguntou sobre a doação, mas Edna e sua equipe fizeram questão de deixar a conversa para outro momento, quando o diagnóstico por morte encefálica de Maria de Fátima foi efetivado.
O diagnóstico de morte encefálica:
Como Adriana explicou, a morte encefálica envolve o cérebro e o tronco cerebral, de forma que apenas a medula do paciente ainda pode ter alguma finalidade. Em outras palavras, tudo o que faz o coração bater, para respirarmos e gerar consciência, tudo o que mantém a tríade vital em funcionamento, passa a não responder mais, porque houve a perda deste comando vital. Como Edna aponta, este é um evento bastante raro: “em torno de 2 a 4% apenas da população mundial, morre dessa forma nos hospitais”.
O diagnóstico foi possível por conta de uma tecnologia médica, desenvolvida em 1950, que permite que o corpo continue respirando por aparelhos, de forma que o coração entenda, por um certo tempo, que a pessoa continua respirando normalmente, mesmo que não seja mais capaz de respirar.
O Brasil tem um dos protocolos mais rigorosos do mundo, que prevê a necessidade do diagnóstico ser feito por dois médicos capacitados distintos, como intensivistas ou neurocirurgiões, a partir de exames clínicos, que serão avaliados por um terceiro profissional. O diagnóstico é totalmente clínico, para garantir que a pessoa não tem mais seus sinais neurológicos, que ela não respira mais, através do Teste de Apneia, além de realizar um exame que comprove que não existe mais nenhuma atividade elétrica, circulatória ou metabólica do funcionamento do cérebro. Esses exames são necessários para não deixar dúvidas sobre o quadro do paciente, que pode ser causado por reação à alguma medicação ou queda da temperatura corporal, por exemplo.
Outro aspecto importante do protocolo brasileiro para transplantes é a isonomia em relação aos pacientes. Além do processo ser totalmente realizado pelo Sistema Único de Saúde, assegura que as pessoas na fila de espera tenham acesso gratuito a todo o tratamento paliativo enquanto aguardam pelo órgão. Isso garante segurança para que a fila siga rigorosamente os critérios de prioridade e urgência, além de possibilitar que pacientes carentes, com pouco ou nenhum provimento, possam acessar o tratamento necessário com qualidade e dignidade.
Por questões tecnológicas, no Brasil não é possível captar múltiplos órgãos e também tecidos, mediante o diagnóstico de morte pelo coração parado. Por isso o diagnóstico pela morte encefálica é tão importante no país. Além disso, como Edna explica, a qualidade dos órgãos dos pacientes que tiveram este tipo morte é superior, uma vez este “é um evento em que a pessoa está morta, mas os órgãos continuam funcionando por um determinado tempo, o que faz com que você disponibilize órgãos com uma qualidade melhor do que aquele cujo coração já parou”.
Um dos principais desafios enfrentados para expandir o número de transplantes realizados no país é o diagnóstico de morte encefálica, uma vez que existe um percentual importante de pacientes que provavelmente estão em morte encefálica, mas que não são diagnosticados.
Como os órgãos são doados?
Órgãos duplos, como pulmões e rins, ou que podem ter parte deles, como fígado e a medula óssea, podem ser doados em vida, uma vez que não comprometam ou tragam riscos ao doador. O sangue é um tecido que também pode ser doado em vida. Já com o falecimento do paciente, a doação dependerá da capacidade de retirada do serviço. Entretanto, podem ser doados desde as córneas, fígado, rins, pâncreas, coração, pulmões, válvulas cardíacas, e até a pele e músculos esqueléticos.
Entretanto, além de possuir esses órgãos saudáveis, é necessário que o doador não tenha sido diagnosticado com nenhuma doença infecciosa ou algum tipo de tumor. Os demais exames variam de acordo com cada órgão. Outro aspecto importante é que muitas vezes o paciente atende aos critérios para ser elegível para a doação de um determinado órgão. Como Adriana exemplifica, é possível que o paciente não tenha sido diagnosticado com nenhum tumor ou doença infecciosa, mas a função cardíaca do seu coração impede que ele seja doado. Contudo, muitas vezes, no momento da captura, a equipe médica percebe que o órgão que seria doado não está adequado para ser transplantado.
São muitos os critérios necessários para que o transplante seja realizado. Entretanto, a diferença de idade entre o doador e o receptor não é uma delas. Como Adriana explica, é necessário que haja compatibilidade da idade por conta do tamanho dos órgãos a serem transplantados, como o pulmão e o coração. Entretanto, o órgão de uma pessoa mais velha garantirá qualidade de vida para o paciente que o receberá, ainda que ela seja mais jovem, uma vez que seu órgão de nascença não é capaz de suprir todas as demandas do seu corpo.
De acordo com o Sistema Nacional de Transplantes existem no Brasil cerca de 44 mil pessoas na fila aguardando para serem transplantadas, sendo que a maior delas é pela doação de rins. Entretanto, o tempo na fila de espera varia de acordo com o órgão necessitado, os critérios de prioridade e urgência, com o estado da federação onde o paciente está cadastrado e a taxa de doadores, por conta da logística de distribuição desses órgãos.
Na mesma época em que 44 mil pessoas aguardavam na fila de espera, foram realizados apenas 29 mil transplantes, número muito aquém do necessário, diante de uma fila que cresce diariamente. Como Edna afirma: “o transplante foi, ao longo dos anos, se tornando vítima do próprio sucesso. Não só no Brasil, como em outros países, quanto mais bem-sucedidos os procedimentos são, maior é o número de pacientes inscritos porque, ele é uma terapêutica bem estabelecida para tratar as doenças terminais de órgãos vitais”. Em 2023 foram realizados menos da metade dos transplantes necessários para que a fila, pelo menos, não crescesse mais. Ainda assim, este foi um ano recorde no número de cirurgias realizadas.
Adriana explica que as taxas de notificação para morte encefálica têm subido, mas ainda existe uma taxa de subnotificação. Estima-se que a morte encefálica aconteça em torno de 100 pessoas a cada um milhão de pessoas. Ano passado foram cinco a cada um milhão, o que indica que ainda existe uma taxa de 40% de notificações em relação ao que era esperado para crescer o número de doações.
Atualmente, o Hospital das Clínicas está apto para realizar cinco modalidades de transplante: coração, fígado, rins, córnea e medula óssea. Espera-se que até o fim deste ano de 2024 o Hospital possa realizar também transplante de pulmões, que hoje acontece apenas em hospitais do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Em 2023, o HC realizou 222 transplantes, sendo o transplante de córnea com maior ocorrência de cirurgias. Os números ainda estão abaixo dos de 2019, antes da pandemia, quando foram realizadas 286 cirurgias, dos quais 159 foram para transplante do coração.
Doar órgãos é vida e cidadania
Adriana define sua experiência como médica do CIHDOTT – HC como gratificante, uma vez que ela pode unir suas experiências profissionais e pessoais em prol do cuidado de famílias em momentos de crise. Ela fala também que é um exercício de amadurecimento, porque o objetivo final da Comissão, sob o ponto de vista exclusivamente técnico, é a doação de órgãos. Mas é necessário também cuidar e acolher essas famílias que estão em sofrimento pela perda de pessoas queridas e contribuir para que elas decidam sobre a doação de órgãos com consciência. E completa que, muitas vezes, é preciso olhar com uma certa festividade, porque quando uma pessoa falece, outras vão viver: “depois voltar ao CTI e ver quem recebeu aquele órgão e já está saindo, já está melhor. Então são muitos desafios, mas é também gratificante”.
Para Edna, trabalhar no setor de transplantes foi um presente. O transplante sempre permeou sua formação, desde quando era acadêmica em uma outra uma outra instituição, que também é centro transplantador. Ao longo dos 20 anos de profissão, sempre atuou como enfermeira intensivista, próxima de pacientes que eram potenciais doadores. Por isso, ela concorda com Adriana que o amadurecimento pessoal e profissional é essencial para atuar no setor, cujo instrumento de trabalho é a morte e o acolhimento das famílias, para que haja a doação. Ela finaliza: “A gente sempre brinca que a doação começa por nós. Se nós não doarmos o nosso tempo, a nossa disponibilidade, o nosso desejo de estar presente, acompanhar, de fazer, o processo não se efetiva. Começam a aparecer problemas e conflitos no meio do caminho para que, lá no final, infelizmente, não seja possível [a doação]”.
Webster compartilha que, para ele e sua família, saber que os órgãos da mãe puderam contribuir para que outras pessoas pudessem ter uma vida melhor, foi um alento frente ao luto. E também uma maneira de seguir com o legado da mãe, que marcou a vida de inúmeras pessoas – muitas desconhecidas para a família até o seu falecimento – doando seu tempo, servindo-as. Webster completa, quando compara bons afetos, como os de Dona Maria de Fátima, com um instrumento de cordas: “[ela] vibrou na sua vida, e isso trouxe reverberações inúmeras na vida dessas outras pessoas. E mesmo depois do seu falecimento, ainda continuou reverberando na vida de dois indivíduos que hoje se encontram com dois órgãos, cada um com um dos rins dela”.
Como ser um doador de órgãos?
A ação de doar também reverberou em Webster, que já declarou seu interesse em doar seus órgãos. É possível manifestar este desejo no ato da solicitação do novo documento de Registro de Identificação.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Colégio Notarial do Brasil lançaram, em abril, a campanha “Um Só Coração: seja vida na vida de alguém”. Para participar, é necessário preencher o formulário online. Na sequência, o representante de um cartório entrará em contato para agendar uma reunião online, para verificação da identidade e dos documentos. Após essa etapa, a pessoa receberá em seu e-mail a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO) e seu CPF ficará disponível para que profissionais da saúde possam agir de forma adequada, caso você seja um paciente elegível para a doação de órgãos.
A AEDO não isenta a autorização da família para a retirada de órgãos. Entretanto, auxilia o trabalho das equipes de acolhimento, que podem apresentá-la no momento do oferecimento da oportunidade de doação. Edna afirma que quase sempre as famílias atendem ao desejo dos pacientes que expressaram em vida o desejo de serem doadores.
Como Edna aponta, o processo de doação de órgãos é coletivo: “esse processo de doação não se dá de forma individual, de jeito nenhum. É um trabalho em equipe, da Comissão com as UTI, da Comissão com as equipes assistenciais. Exige uma capacidade de relacionamento, de comunicação e de resiliência para que a gente possa seguir e fazer um bom trabalho”. É um processo que depende também do gesto de solidariedade e de cidadania. É um ato de amor.
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Disponível em <https://sindifes.org.br/sindifes-esta-cadastrando-entidades-e-comunidades-para-receberem-doacoes-de-itens-de-alimentacao-e-higiene-pessoal/> Acesso: 26/06/2025 às 11:36